SEMINÁRIOS 3 Capítulo III e VI do Livro de MORIN, Edgar

CAPÍTULO III ENSINAR A CONDIÇÃO HUMANA

A educação do futuro deverá ser o ensino primeiro e universal, centrado na condição humana. Estamos na era planetária; uma aventura comum conduz os seres humanos, onde quer que se encontrem. Estes devem reconhecer-se em sua humanidade comum e ao mesmo tempo reconhecer a diversidade cultural inerente a tudo que é humano.
Conhecer o humano é, antes de mais nada, situá-lo no universo, e não separá-lo dele. Como vimos (Capítulo I), todo conhecimento deve contextualizar seu objeto, para ser pertinente. “Quem somos?” é inseparável de “Onde estamos?”, “De onde viemos?”, “Para onde vamos?” Interrogar nossa condição humana implica questionar primeiro nossa posição no mundo. O fluxo de conhecimentos, no final do século XX, traz nova luz sobre a situação do ser humano no universo. Os progressos concomitantes da cosmologia, das ciências da Terra, da ecologia, da biologia, da pré-história, nos anos 60-70, modificaram as idéias sobre o Universo, a Terra, a Vida e sobre o próprio Homem. Mas estas contribuições permanecem ainda desunidas. O humano continua esquartejado, partido como pedaços de um quebra-cabeça ao qual falta uma peça.
Aqui se apresenta um problema epistemológico: é impossível conceber a unidade complexa do ser humano pelo pensamento disjuntivo, que concebe nossa humanidade de maneira insular, fora do cosmos que a rodeia, da matéria física e do espírito do qual somos constituídos, bem como pelo pensamento redutor, que restringe a unidade humana a um substrato puramente bioanatômico.

As ciências humanas são elas próprias fragmentadas e compartimentadas. Assim, a complexidade humana torna-se invisível
e o homem desvanece “como um rastro na areia”. Além disso, o novo saber, por não ter sido religado, não é assimilado nem integrado. Paradoxalmente assiste-se ao agravamento da ignorância do todo, enquanto avança o conhecimento das partes.
Disso decorre que, para a educação do futuro, é necessário promover grande remembramento dos conhecimentos oriundos das ciências naturais, a fim de situar a condição humana no mundo, dos conhecimentos derivados das ciências humanas para colocar em evidência a multidimensionalidade e a complexidade humanas, bem como integrar (na educação do futuro) a contribuição inestimável das humanidades, não somente a filosofia e a história, mas também a literatura, a poesia, as artes...





1. ENRAIZAMENTO/DESENRAIZAMENTO DO SER HUMANO
Devemos reconhecer nosso duplo enraizamento no cosmos físico e na esfera viva e, ao mesmo tempo, nosso desenraizamento propriamente humano. Estamos simultaneamente dentro e fora da natureza.
1.1 A condição cósmica
Abandonamos recentemente a idéia do Universo ordenado, perfeito, eterno pelo universo nascido da irradiação, em devenir disperso, onde atuam, de modo complementar, concorrente e antagônico, a ordem, a desordem e a organização. Encontramo-nos no gigantesco cosmos em expansão, constituído de bilhões de galáxias e de bilhões e bilhões de estrelas.
Aprendemos que nossa Terra era um minúsculo pião que gira em torno de um astro errante na periferia de pequena galáxia de subúrbio. As partículas de nossos organismos teriam aparecido desde os primeiros segundos de existência de nosso cosmo há (talvez?) quinze bilhões de anos; nossos átomos de carbono formaram- se em um ou vários sóis anteriores ao nosso; nossas moléculas agruparam-se nos primeiros tempos convulsivos da Terra; estas macromoléculas associaram-se em turbilhões dos quais um, cada vez mais rico em diversidade molecular, se metamorfoseou em organização de novo tipo, em relação à organização estritamente química: uma auto-organização viva.
A epopéia cósmica da organização, continuamente sujeita às forças da desorganização e da dispersão, é também a epopéia da religação que, sozinha, impediu que o cosmos se dispersasse ou se desvanecesse ao nascer. No seio da aventura cósmica, no ápice do desenvolvimento prodigioso de um ramo singular da auto-organização viva, prosseguimos a aventura à nossa maneira.

1.2 A condição física Uma porção de substância física organizou-se de maneira termodinâmica sobre a Terra; por meio de imersão marinha, de banhos químicos, de descargas elétricas, adquiriu Vida. A vida é
solar: todos os seus elementos foram forjados em um sol e reunidos
em um planeta cuspido pelo Sol: ela é a transformação de uma torrente fotônica resultante de resplandecentes turbilhões solares. Nós, os seres vivos, somos um elemento da diáspora cósmica, algumas migalhas da existência solar, um diminuto broto da existência terrena.

1.3 A condição terrestre
Pertencemos ao destino cósmico, porém estamos marginalizados: nossa Terra é o terceiro satélite de um sol destronado de seu posto central, convertido em astro pigmeu errante entre bilhões de estrelas em uma galáxia periférica de um universo em expansão...
Nosso planeta agregou-se há cinco bilhões de anos, a partir, provavelmente, de detritos cósmicos resultantes da explosão de um sol anterior, e há quatro bilhões de anos a organização viva emergiu de um turbilhão macromolecular em meio a tormentas e convulsões telúricas.
A Terra autoproduziu-se e autoorganizou-se na dependência do Sol; constituiu-se em complexo biofísico a partir do momento em que se desenvolveu a biosfera. Somos a um só tempo seres cósmicos e terrestres. A vida nasceu de convulsões telúricas, e sua aventura correu perigo de extinção ao menos por duas vezes (no fim da era primária e durante a secundária). Desenvolveu-se não apenas em diversas espécies, mas também em ecossistemas em que as predações e devorações constituíram a cadeia trófica de dupla face: a da vida e a da morte. Nosso planeta erra no cosmo. Devemos assumir as conseqüências da situação marginal, periférica que é a nossa. Como seres vivos deste planeta, dependemos vitalmente da biosfera terrestre; devemos reconhecer nossa identidade terrena física e biológica.

1.4 A condição humana A importância da hominização é primordial à educação voltada para a condição humana, porque nos mostra como a animalidade e a humanidade constituem, juntas, nossa condição humana. A antropologia pré-histórica mostra-nos como a hominização é uma aventura de milhões de anos, ao mesmo tempo
descontínua — surgimento de novas espécies: habilis, erectus, neanderthal, sapiens, e desaparecimento das precedentes, aparecimento da linguagem e da cultura — e contínua, no sentido de que prossegue em um processo de bipedização, manualização, erguimento do corpo, cerebralização, juvenescimento (o adulto que conserva os caracteres não-especializados do embrião e os caracteres psicológicos da juventude), de complexificação social, processo durante o qual aparece a linguagem propriamente humana, ao mesmo tempo que se constitui a cultura, capital adquirido de saberes, de fazeres, de crenças e mitos transmitidos de geração em geração... A hominização conduz a novo início. O hominídeo humaniza-se. Doravante, o conceito de homem tem duplo princípio; um princípio biofísico e um psico-sócio-cultural, um remetendo ao outro. Somos originários do cosmos, da natureza, da vida, mas, devido à própria humanidade, à nossa cultura, à nossa mente, à nossa consciência, tornamo-nos estranhos a este cosmos, que nos parece secretamente íntimo. Nosso pensamento e nossa consciência fazem-nos conhecer o mundo físico e distanciam-nos dele. O próprio fato de considerar racional e cientificamente o universo separa-nos dele. Desenvolvemo-nos além do mundo físico e vivo. É neste “além” que tem lugar a plenitude da humanidade. À maneira de ponto do holograma, trazemos no seio de nossa singularidade não somente toda a humanidade e toda a vida, mas também quase todo o cosmos, incluindo seu mistério que, sem dúvida, jaz no fundo da natureza humana. Mas não somos seres que poderiam ser conhecidos e compreendidos unicamente a partir da cosmologia, da física, da biologia, da psicologia...

2. O HUMANO DO HUMANO

2.1 Unidualidade O humano é um ser a um só tempo plenamente biológico e plenamente cultural, que traz em si a unidualidade originária. É super e hipervivente: desenvolveu de modo surpreendente as potencialidades da vida. Exprime de maneira hipertrofiada as qualidades egocêntricas e altruístas do indivíduo, alcança paroxismos de vida em êxtases e na embriaguez, ferve de ardores orgiásticos e orgásmicos, e é nesta hipervitalidade que o Homo sapiens é também Homo demens. O homem é, portanto, um ser plenamente biológico, mas, se não dispusesse plenamente da cultura, seria um primata do mais baixo nível. A cultura acumula em si o que é conservado, transmitido, aprendido, e comporta normas e princípios de aquisição.

2.2 O circuito cérebro/mente/cultura
O homem somente se realiza plenamente como ser humano pela cultura e na cultura. Não há cultura sem cérebro humano (aparelho biológico dotado de competência para agir, perceber, saber, aprender), mas não há mente (mind), isto é, capacidade de consciência e pensamento, sem cultura. A mente humana é uma criação que emerge e se afirma na relação cérebro-cultura. Com o surgimento da mente, ela intervém no funcionamento cerebral e retroage sobre ele. Há, portanto, uma tríade em circuito entre cérebro/mente/cultura, em que cada um dos termos é necessário ao outro. A mente é o surgimento do cérebro que suscita a cultura, que não existiria sem o cérebro.

2.3 O circuito razão/afeto/pulsão
Encontramos, ao mesmo tempo, uma tríade bioantropológica distinta de cérebro/mente/cultura: decorre da concepção do cérebro triúnico de Mac Lean. O cérebro humano contém: a) paleocéfalo, herdeiro do cérebro reptiliano, fonte da agressividade, do cio, das pulsões primárias, b) mesocéfalo, herdeiro do cérebro dos antigos mamíferos, no qual o hipocampo parece ligado ao desenvolvimento da afetividade e da memória a longo prazo, c) o córtex, que, já bem desenvolvido nos mamíferos, chegando a envolver todas as estruturas do encéfalo e a formar os dois hemisférios cerebrais, hipertrofia-se nos humanos no neocórtex, que é a sede das aptidões analíticas, lógicas, estratégicas, que a cultura permite atualizar completamente. Assim emerge outra face da complexidade humana, que integra a animalidade (mamífero e réptil) na humanidade e a humanidade na animalidade.7 As relações entre as três instâncias são não apenas complementares, mas também antagônicas, comportando conflitos bem conhecidos entre a pulsão, o coração e a razão; correlativamente a relação triúnica não obedece à hierarquia razão/afetividade/pulsão; há uma relação instável, permutante, rotativa entre estas três instâncias. A racionalidade não dispõe, portanto, de poder supremo. É uma instância concorrente e antagônica às outras instâncias de uma tríade inseparável, e é frágil: pode ser dominada, submersa ou mesmo escravizada pela afetividade ou pela pulsão
7. Como vimos no capítulo precedente, isso leva-nos a associar estreitamente inteligência a afetividade, o que indicam claramente os trabalhos de homicida pode servir-se da maravilhosa máquina lógica e utilizar a racionalidade técnica para organizar e justificar suas ações.

2.4 O circuito indivíduo/sociedade/espécie Finalmente, existe a relação triádica indivíduo/sociedade/espécie. Os indivíduos são produtos do processo reprodutor da espécie humana, mas este processo deve ser ele próprio realizado por dois indivíduos. As interações entre indivíduos produzem a sociedade, que testemunha o surgimento da cultura, e que retroage sobre os indivíduos pela cultura. Indivíduo Espécie Sociedade Não se pode tornar o indivíduo absoluto e fazer dele o fim supremo desse circuito; tampouco se pode fazê-lo com a sociedade ou a espécie. No nível antropológico, a sociedade vive para o indivíduo, o qual vive para a sociedade; a sociedade e o indivíduo vivem para a espécie, que vive para o indivíduo e para a sociedade. Cada um desses termos é ao mesmo tempo meio e fim: é a cultura e a sociedade que garantem a realização dos indivíduos, e são as interações entre indivíduos que permitem a perpetuação da cultura e a auto-organização da sociedade. Entretanto, podemos considerar que a plenitude e a livre expressão dos indivíduos-sujeitos constituem nosso propósito ético e político, sem, entretanto, pensarmos que constituem a própria finalidade da tríade indivíduo/sociedade/espécie. A complexidade humana não poderia ser compreendida dissociada dos elementos que a constituem: todo desenvolvimento verdadeiramente humano significa o desenvolvimento conjunto das autonomias individuais, das participações comunitárias e do sentimento de pertencer à espécie humana.


3. UNITAS MULTIPLEX: UNIDADE E DIVERSIDADE HUMANA
Cabe à educação do futuro cuidar para que a idéia de unidade da espécie humana não apague a idéia de diversidade e que a da sua diversidade não apague a da unidade. Há uma unidade humana. Há uma diversidade humana. A unidade não está apenas nos traços biológicos da espécie Homo sapiens. A diversidade não está apenas nos traços psicológicos, culturais, sociais do ser humano. Existe também diversidade propriamente biológica no seio da unidade humana; não apenas existe unidade cerebral, mas mental, psíquica, afetiva, intelectual; além disso, as mais diversas culturas e sociedades têm princípios geradores ou organizacionais comuns. É a unidade humana que traz em si os princípios de suas múltiplas diversidades. Compreender o humano é compreender sua unidade na diversidade, sua diversidade na unidade. É preciso conceber a unidade do múltiplo, a multiplicidade do uno. A educação deverá ilustrar este princípio de unidade/diversidade em todas as esferas.

3.1 A esfera individual
Na esfera individual, existe unidade/diversidade genética. Todo ser humano traz geneticamente em si a espécie humana e compreende geneticamente a própria singularidade anatômica, fisiológica. Há unidade/diversidade cerebral, mental, psicológica, afetiva, intelectual, subjetiva: todo ser humano carrega, de modo cerebral, mental, psicológico, afetivo, intelectual e subjetivo, os caracteres fundamentalmente comuns e ao mesmo tempo possui as próprias singularidades cerebrais, mentais, psicológicas, afetivas, intelectuais, subjetivas...

3.2 A esfera social
Na esfera da sociedade, existe a unidade/diversidade das línguas (todas diversas a partir de uma estrutura de dupla articulação comum, o que nos torna gêmeos pela linguagem e separados pelas línguas), das organizações sociais e das culturas.

3.3 Diversidade cultural e pluralidade de indivíduos Diz-se justamente a cultura, diz-se justamente as culturas. A cultura é constituída pelo conjunto dos saberes, fazeres, regras, normas, proibições, estratégias, crenças, idéias, valores, mitos, que se transmite de geração em geração, se reproduz em cada indivíduo, controla a existência da sociedade e mantém a complexidade psicológica e social. Não há sociedade humana, arcaica ou moderna, desprovida de cultura, mas cada cultura é singular. Assim, sempre existe a cultura nas culturas, mas a cultura existe apenas por meio das culturas. As técnicas podem migrar de uma cultura para outra, como foi o caso da roda, da atrelagem, da bússola, da imprensa. Foi
assim também com determinadas crenças religiosas, depois com idéias leigas que, nascidas em uma cultura singular, puderam se universalizar. Mas existe em cada cultura um capital específico de crenças, idéias, valores, mitos e, particularmente, aqueles que unem uma comunidade singular a seus ancestrais, suas tradições, seus mortos. Os que vêem a diversidade das culturas tendem a minimizar
ou a ocultar a unidade humana; os que vêem a unidade humana tendem a considerar como secundária a diversidade das culturas. Ao contrário, é apropriado conceber a unidade que assegure e favoreça a diversidade, a diversidade que se inscreve na unidade. O duplo fenômeno da unidade e da diversidade das culturas é crucial. A cultura mantém a identidade humana naquilo que tem de específico; as culturas mantêm as identidades sociais naquilo que têm de específico. As culturas são aparentemente fechadas em si mesmas para salvaguardar sua identidade singular. Mas, na realidade, são também abertas: integram nelas não somente os saberes e técnicas, mas também idéias, costumes, alimentos, indivíduos vindos de fora. As assimilações de uma cultura a outra são enriquecedoras. Verificam-se também mestiçagens culturais bem-sucedidas, como as que produziram o flamenco, a música da América Latina, o raï*. Ao contrário, a desintegração de uma cultura sob o efeito destruidor da dominação técnicocivilizacional é uma perda para toda a humanidade, cuja diversidade cultural constitui um dos mais preciosos tesouros. O ser humano é ao mesmo tempo singular e múltiplo. Dissemos que todo ser humano, tal como o ponto de um holograma, traz em si o cosmo. Devemos ver também que todo ser, mesmo aquele fechado na mais banal das vidas, constitui ele próprio um cosmo. Traz em si multiplicidades interiores, personalidades virtuais, uma infinidade de personagens quiméricos, uma poliexistência no real e no imaginário, no sono e na vigília, na obediência e na transgressão, no ostensivo e no secreto, balbucios embrionários em suas cavidades e profundezas insondáveis. Cada qual contém em si galáxias de sonhos e de fantasmas, impulsos de desejos e amores insatisfeitos, abismos de desgraças, imensidões de indiferença gélida, queimações de astro em fogo, acessos de ódio, desregramentos, lampejos de lucidez, tormentas dementes...

3.4 Sapiens/demens
O século XXI deverá abandonar a visão unilateral que define o ser humano pela racionalidade (Homo sapiens), pela técnica (Homo faber), pelas atividades utilitárias (Homo economicus), pelas necessidades obrigatórias (Homo prosaicus). O ser humano é complexo e traz em si, de modo bipolarizado, caracteres antagonistas: sapiens e demens (sábio e louco) faber e ludens (trabalhador e lúdico) empiricus e imaginarius (empírico e imaginário)
economicus e consumans (econômico e consumista) prosaicus e poeticus (prosaico e poético).
O homem da racionalidade é também o da afetividade, do mito e do delírio (demens). O homem do trabalho é também o homem do jogo (ludens). O homem empírico é também o homem imaginário (imaginarius). O homem da economia é também o do consumismo (consumans). O homem prosaico é também o da poesia, isto é, do fervor, da participação, do amor, do êxtase. O amor é poesia. Um amor nascente inunda o mundo de poesia, um amor duradouro irriga de poesia a vida cotidiana, o fim de um amor devolve-nos à prosa. Assim, o ser humano não só vive de racionalidade e de técnica; ele se desgasta, se entrega, se dedica a danças, transes, mitos, magias, ritos; crê nas virtudes do sacrifício, viveu freqüentemente para preparar sua outra vida além da morte. Por toda parte, uma atividade técnica, prática, intelectual testemunha a inteligência empírico-racional; em toda parte, festas, cerimônias, cultos com suas possessões, exaltações, desperdícios, “consumismos”, testemunham o Homo ludens, poeticus, consumans, imaginarius, demens. As atividades de jogo, de festas, de ritos não são apenas pausas antes de retomar a vida prática ou o trabalho; as crenças nos deuses e nas idéias não podem ser reduzidas a ilusões ou superstições: possuem raízes que mergulham nas profundezas antropológicas; referem-se ao ser humano em sua natureza. Há relação manifesta ou subterrânea entre o psiquismo, a afetividade, a magia, o mito, a religião. Existe ao mesmo tempo unidade e dualidade entre Homo faber, Homo ludens, Homo sapiens e Homo demens. E, no ser humano, o desenvolvimento do conhecimento racional-empírico-técnico jamais anulou o conhecimento simbólico, mítico, mágico ou poético.

3.5 Homo complexus
Somos seres infantis, neuróticos, delirantes e também racionais. Tudo isso constitui o estofo propriamente humano. O ser humano é um ser racional e irracional, capaz de medida e desmedida; sujeito de afetividade intensa e instável. Sorri, ri, chora, mas sabe também conhecer com objetividade; é sério e calculista, mas também ansioso, angustiado, gozador, ébrio, extático; é um ser de violência e de ternura, de amor e de ódio; é um ser invadido pelo imaginário e pode reconhecer o real, que é consciente da morte, mas que não pode crer nela; que secreta o mito e a magia, mas também a ciência e a filosofia; que é possuído pelos deuses e pelas Idéias, mas que duvida dos deuses e critica as Idéias; nutre-se dos conhecimentos comprovados, mas também de ilusões e de quimeras. E quando, na ruptura de controles racionais, culturais, materiais, há confusão entre o objetivo e o subjetivo, entre o real e o imaginário, quando há hegemonia de ilusões, excesso desencadeado, então o Homo demens submete o Homo sapiens e subordina a inteligência racional a serviço de seus monstros. A loucura é também um problema central do homem e não apenas seu dejeto ou sua doença. O tema da loucura humana foi evidente para a filosofia da Antiguidade, a sabedoria oriental, os poetas de todos os continentes, os moralistas, Erasmo, Montaigne, Pascal, Rousseau. Volatilizou-se não somente na euforia ideológica humanista que destinou o homem a reger o universo, mas
também nas ciências humanas e na filosofia. A demência não levou a espécie humana à extinção (só as energias nucleares liberadas pela razão científica e só o desenvolvimento da racionalidade técnica dependente da biosfera poderão conduzi-la ao desaparecimento). Entretanto, tanto tempo parece ter-se perdido, desperdiçado com ritos, cultos, delírios, decorações, danças e muitas ilusões... A despeito disso, o desenvolvimento técnico, em seguida o científico, foi fulgurante; as civilizações produziram filosofia e ciência; a Humanidade dominou a Terra. Isso significa que os progressos da complexidade se fazem ao mesmo tempo, apesar, com e por causa da loucura humana. A dialógica sapiens/demens foi criadora e também destruidora; o pensamento, a ciência, as artes foram irrigadas pelas forças profundas da afetividade, por sonhos, angústias, desejos, medos, esperanças. Nas criações humanas há sempre uma dupla pilotagem sapiens/demens. Demens inibiu, mas também favoreceu sapiens. Platão já havia observado que Diké, a lei sábia, é filha de Übris, o descomedimento. Tal furor cego destrói as colunas de um templo de servidão, como a tomada da Bastilha e, ao contrário, tal culto da Razão nutre a guilhotina. A possibilidade do gênio decorre de que o ser humano não é completamente prisioneiro do real, da lógica (neocórtex), do código genético, da cultura, da sociedade. A pesquisa, a descoberta avançam no vácuo da incerteza e da incapacidade de decidir. O gênio brota na brecha do incontrolável, justamente onde a loucura ronda. A criação brota da união entre as profundezas obscuras psicoafetivas e a chama viva da consciência. Por isso, a educação deveria mostrar e ilustrar o Destino
multifacetado do humano: o destino da espécie humana, o destino individual, o destino social, o destino histórico, todos entrelaçados
e inseparáveis. Assim, uma das vocações essenciais da educação do futuro será o exame e o estudo da complexidade humana. Conduziria à tomada de conhecimento, por conseguinte, de consciência, da condição comum a todos os humanos e da muito rica e necessária diversidade dos indivíduos, dos povos, das culturas, sobre nosso enraizamento como cidadãos da Terra...


XXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXX


Capítulo VI do livro de MORIN, Edgar
CAPÍTULO VI
ENSINAR A COMPREENSÃO
A situação é paradoxal sobre a nossa Terra. As interdependências multiplicaram-se. A consciência de ser solidários com a vida e a morte, de agora em diante, une os humanos uns aos outros. A comunicação triunfa, o planeta é atravessado por redes, fax, telefones celulares, modems, Internet. Entretanto, a incompreensão permanece geral. Sem dúvida, há importantes e múltiplos progressos da compreensão, mas o avanço da incompreensão parece ainda maior. O problema da compreensão tornou-se crucial para os humanos. E, por este motivo, deve ser uma das finalidades da educação do futuro. Lembremo-nos de que nenhuma técnica de comunicação, do telefone à Internet, traz por si mesma a compreensão. A compreensão não pode ser quantificada. Educar para compreender a matemática ou uma disciplina determinada é uma coisa; educar para a compreensão humana é outra. Nela encontra-se a missão propriamente espiritual da educação: ensinar a compreensão entre as pessoas como condição e garantia da solidariedade intelectual e moral da humanidade.

O problema da compreensão é duplamente polarizado:
• Um pólo, agora planetário, é o da compreensão entre humanos, os encontros e relações que se multiplicam entre pessoas, culturas, povos de diferentes origens culturais.
• Um pólo individual é o das relações particulares entre próximos. Estas estão cada vez mais ameaçadas pela incompreensão (como será indicado mais adiante). O axioma “quanto mais próximos estamos, melhor compreendemos” é apenas uma verdade relativa à qual se pode opor o axioma contrário “quanto mais estamos próximos, menos compreendemos”, já que a proximidade pode alimentar mal-entendidos, ciúmes, agressividades, mesmo nos meios aparentemente mais evoluídos intelectualmente.

1. AS DUAS COMPREENSÕES
A comunicação não garante a compreensão. A informação, se for bem transmitida e compreendida, traz inteligibilidade, condição primeira necessária, mas não suficiente, para a compreensão. Há duas formas de compreensão: a compreensão intelectual ou objetiva e a compreensão humana intersubjetiva. Compreender significa intelectualmente apreender em conjunto, comprehendere, abraçar junto (o texto e seu contexto, as partes e o todo, o múltiplo e o uno). A compreensão intelectual passa pela inteligibilidade e pela explicação. Explicar é considerar o que é preciso conhecer como objeto e aplicar-lhe todos os meios objetivos de conhecimento. A explicação é, bem entendido, necessária para a compreensão intelectual ou objetiva. A compreensão humana vai além da explicação. A explicação é bastante para a compreensão intelectual ou objetiva das coisas anônimas ou materiais. É insuficiente para a compreensão humana. Esta comporta um conhecimento de sujeito a sujeito. Por conseguinte, se vejo uma criança chorando, vou compreendê-la, não por medir o grau de salinidade de suas lágrimas, mas por
buscar em mim minhas aflições infantis, identificando-a comigo e identificando-me com ela. O outro não apenas é percebido objetivamente, é percebido como outro sujeito com o qual nos identificamos e que identificamos conosco, o ego alter que se torna alter ego. Compreender inclui, necessariamente, um processo de empatia, de identificação e de projeção. Sempre intersubjetiva, a compreensão pede abertura, simpatia e generosidade.

2. EDUCAÇÃO PARA OS OBSTÁCULOS À COMPREENSÃO
Os obstáculos exteriores à compreensão intelectual ou objetiva são múltiplos. A compreensão do sentido das palavras de outro, de suas idéias, de sua visão do mundo está sempre ameaçada por todos os lados:
• Existe o “ruído” que parasita a transmissão da informação, cria o mal-entendido ou o não-entendido.
• Existe a polissemia de uma noção que, enunciada em um sentido, é entendida de outra forma; assim, a palavra “cultura”, verdadeiro camaleão conceptual, pode significar tudo que, não sendo naturalmente inato, deve ser aprendido e adquirido; pode significar os usos, valores, crenças de uma etnia ou de uma nação; pode significar toda a contribuição das humanidades, das literaturas, da arte e da filosofia.
• Existe a ignorância dos ritos e costumes do outro, especialmente dos ritos de cortesia, o que pode levar a ofender inconscientemente ou a desqualificar a si mesmo perante o outro.
• Existe a incompreensão dos Valores imperativos propagados no seio de outra cultura, como o são nas sociedades tradicionais o respeito aos idosos, a obediência incondicional das crianças, a crença religiosa ou, ao contrário, em nossas sociedades democráticas contemporâneas, o culto ao indivíduo e o respeito às liberdades.
• Existe a incompreensão dos imperativos éticos próprios a uma cultura, o imperativo da vingança nas sociedades tribais, o imperativo da lei nas sociedades evoluídas.
• Existe freqüentemente a impossibilidade, no âmago da visão do mundo, de compreender as idéias ou os argumentos de outra visão do mundo, como de resto no âmago da filosofia, de compreender outra filosofia.
• Existe, enfim e sobretudo, a impossibilidade de compreensão de uma estrutura mental em relação a outra.
Os obstáculos intrínsecos às duas compreensões são enormes; são não somente a indiferença, mas também o egocentrismo, o etnocentrismo, o sociocentrismo, que têm como traço comum se situarem no centro do mundo e considerar como secundário, insignificante ou hostil tudo o que é estranho ou distante.

2.1 O egocentrismo
O egocentrismo cultiva a self-deception, tapeação de si próprio, provocada pela autojustificação, pela autoglorificação e pela tendência a jogar sobre outrem, estrangeiro ou não, a causa de todos os males. A self-deception é um jogo rotativo complexo de mentira, sinceridade, convicção, duplicidade, que nos leva a perceber de modo pejorativo as palavras ou os atos alheios, a selecionar o que lhes é desfavorável, eliminar o que lhes é favorável, selecionar as lembranças gratificantes, eliminar ou transformar o desonroso. O Cercle de la Croix, de Iain Peaars, mostra bem, em quatro narrativas diferentes dos mesmos acontecimentos e do mesmo homicídio, a incompatibilidade entre as narrativas devido não somente à dissimulação e à mentira, mas às idéias preconcebidas, às racionalizações, ao egocentrismo ou à crença religiosa. A Féerie por une autre fois, de Louis-Ferdinand Céline, é testemunho único de autojustificação frenética do autor, de sua incapacidade de se autocriticar, de seu raciocínio paranóico. De fato, a incompreensão de si é fonte muito importante da incompreensão de outro. Mascaram-se as próprias carências e fraquezas, o que nos torna implacáveis com as carências e fraquezas dos outros. O egocentrismo amplia-se com o afrouxamento da disciplina e das obrigações que anteriormente levavam à renúncia aos desejos individuais, quando se opunham à vontade dos pais ou cônjuges. Hoje a incompreensão deteriora as relações pais-filhos, marido-esposas. Expande-se como um câncer na vida cotidiana, provocando calúnias, agressões, homicídios psíquicos (desejos de morte). O mundo dos intelectuais, escritores ou universitários, que deveria ser mais compreensivo, é o mais gangrenado sob o efeito da hipertrofia do ego, nutrido pela necessidade de consagração e de glória.

2.2 Etnocentrismo e sociocentrismo
O etnocentrismo e o sociocentrismo nutrem xenofobias e racismos e podem até mesmo despojar o estrangeiro da qualidade de ser humano. Por isso, a verdadeira luta contra os racismos se operaria mais contra suas raízes ego-sócio-cêntricas do que contra seus sintomas. As idéias preconcebidas, as racionalizações com base em premissas arbitrárias, a autojustificação frenética, a incapacidade de se autocriticar, os raciocínios paranóicos, a arrogância, a recusa, o desprezo, a fabricação e a condenação de culpados são as causas e as conseqüências das piores incompreensões, oriundas tanto do egocentrismo quanto do etnocentrismo. A incompreensão produz tanto o embrutecimento quanto este produz a incompreensão. A indignação economiza o exame e a análise. Como disse Clément Rosset: “A desqualificação por motivos de ordem moral permite evitar qualquer esforço de inteligência do objeto desqualificado de maneira que um juízo moral traduz sempre a recusa de analisar e mesmo a recusa de pensar”. Como Westermarck assinalava: “O caráter distintivo da indignação moral continua sendo o desejo instintivo de devolver pena por pena.” A incapacidade de conceber um complexo e a redução do conhecimento de um conjunto ao conhecimento de uma de suas partes provocam conseqüências ainda mais funestas no mundo das relações humanas que no do conhecimento do mundo físico.

2.3 O espírito redutor
Reduzir o conhecimento do complexo ao de um de seus elementos, considerado como o mais significativo, tem conseqüências piores em ética do que em conhecimento físico. Entretanto, tanto é o modo de pensar dominante, redutor e simplificador, aliado aos mecanismos de incompreensão, que determina a redução da personalidade, múltipla por natureza, a um único de
seus traços. Se o traço for favorável, haverá desconhecimento dos aspectos negativos desta personalidade. Se for desfavorável, haverá desconhecimento dos seus traços positivos. Em um e em outro caso, haverá incompreensão. A compreensão pede, por exemplo, que não se feche, não se reduza o ser humano a seu crime, nem mesmo se cometeu vários crimes. Como dizia Hegel:
“O pensamento abstrato nada vê no assassino além desta qualidade abstrata (retirada de seu complexo) e (destrói) nele, com a ajuda desta única qualidade, o que resta de sua humanidade.”
Além disso, lembremo-nos de que a possessão por uma idéia, uma fé, que dá a convicção absoluta de sua verdade, aniquila qualquer possibilidade de compreensão de outra idéia, de outra fé, de outra pessoa. Assim, os obstáculos à compreensão são múltiplos e multiformes: os mais graves são constituídos pela cadeia egocentrismo/autojustificação/self-deception, pelas possessões e reduções, assim como pelo talião e pela vingança — estruturas arraigadas de modo indelével no espírito humano, que ele não pode arrancar, mas que ele pode e deve superar. A conjunção das incompreensões, a intelectual e a humana, a individual e a coletiva, constitui obstáculos maiores para a melhoria das relações entre indivíduos, grupos, povos, nações. Não são somente as vias econômicas, jurídicas, sociais, culturais que facilitarão as vias da compreensão; é preciso também recorrer a vias intelectuais e éticas, que poderão desenvolver a dupla compreensão, intelectual e humana.

3. A ÉTICA DA COMPREENSÃO
A ética da compreensão é a arte de viver que nos demanda, em primeiro lugar, compreender de modo desinteressado. Demanda grande esforço, pois não pode esperar nenhuma reciprocidade: aquele que é ameaçado de morte por um fanático compreende por que o fanático quer matá-lo, sabendo que este jamais o compreenderá. Compreender o fanático que é incapaz de nos compreender é compreender as raízes, as formas e as manifestações do fanatismo humano. É compreender porque e como se odeia ou se despreza. A ética da compreensão pede que se compreenda a incompreensão.
A ética da compreensão pede que se argumente, que se refute em vez de excomungar e anatematizar. Encerrar na noção de traidor o que decorre da inteligibilidade mais ampla impede que se reconheçam o erro, os desvios, as ideologias, as derivas. A compreensão não desculpa nem acusa: pede que se evite a condenação peremptória, irremediável, como se nós mesmos nunca tivéssemos conhecido a fraqueza nem cometido erros. Se soubermos compreender antes de condenar, estaremos no caminho da humanização das relações humanas. O que favorece a compreensão é:

3.1 O “bem pensar”
Este é o modo de pensar que permite apreender em conjunto o texto e o contexto, o ser e seu meio ambiente, o local e o global, o multidimensional, em suma, o complexo, isto é, as condições do comportamento humano. Permite-nos compreender igualmente as condições objetivas e subjetivas (self-deception, possessão por uma fé, delírios e histerias).

3.2 A introspecção
A prática mental do auto-exame permanente é necessária, já que a compreensão de nossas fraquezas ou faltas é a via para a compreensão das do outro. Se descobrirmos que somos todos seres falíveis, frágeis, insuficientes, carentes, então podemos descobrir que todos necessitamos de mútua compreensão. O auto-exame crítico permite que nos descentremos em relação a nós mesmos e, por conseguinte, que reconheçamos e julguemos nosso egocentrismo. Permite que não assumamos a posição de juiz de todas as coisas.

4. A CONSCIÊNCIA DA COMPLEXIDADE HUMANA
A compreensão do outro requer a consciência da complexidade humana. Assim, podemos buscar na literatura romanesca e no cinema a consciência de que não se deve reduzir o ser à menor parte dele próprio, nem mesmo ao pior fragmento de seu passado. Enquanto, na vida comum, nos apressamos em encerrar na noção de criminoso aquele que cometeu um crime, reduzindo os demais aspectos de sua vida e de sua pessoa a este traço único, descobrimos em seus múltiplos aspectos os reis gângsters de Shakespeare e os gângsters reais dos filmes policiais. Podemos ver como um criminoso pode se transformar e se redimir como Jean Valjean e Raskolnikov. Podemos enfim aprender com eles as maiores lições de vida, a compaixão do sofrimento dos humilhados e a verdadeira compreensão.

4.1 A abertura subjetiva (simpática) em relação ao outro Estamos abertos para determinadas pessoas próximas privilegiadas, mas permanecemos, na maioria do tempo, fechados para as demais. O cinema, ao favorecer o pleno uso de nossa subjetividade pela projeção e identificação, faz-nos simpatizar e compreender os que nos seriam estranhos ou antipáticos em tempos normais.
Aquele que sente repugnância pelo vagabundo encontrado na rua simpatiza de todo coração, no cinema, com o vagabundo Carlitos. Enquanto na vida cotidiana ficamos quase indiferentes às misérias físicas e morais, sentimos compaixão e comiseração na leitura de um romance ou na projeção de um filme.

4.2 A interiorização da tolerância
A verdadeira tolerância não é indiferente às idéias ou ao ceticismo generalizados. Supõe convicção, fé, escolha ética e ao mesmo tempo aceitação da expressão das idéias, convicções, escolhas contrárias às nossas. A tolerância supõe sofrimento ao suportar a expressão de idéias negativas ou, segundo nossa opinião, nefastas, e a vontade de assumir este sofrimento. Há quatro graus de tolerância: o primeiro, expresso por Voltaire, obriga-nos a respeitar o direito de proferir um propósito que nos parece ignóbil; isso não é respeitar o ignóbil, trata-se de evitar que se imponha nossa concepção sobre o ignóbil a fim de proibir uma fala. O segundo grau é inseparável da opção democrática: a essência da democracia é se nutrir de opiniões diversas e antagônicas; assim, o princípio democrático conclama cada um a respeitar a expressão de idéias antagônicas às suas. O terceiro grau obedece à concepção de Niels Bohr, para quem o contrário de uma idéia profunda é uma outra idéia profunda; dito de outra maneira, há uma verdade na idéia antagônica à nossa, e é esta verdade que é preciso respeitar. O quarto grau vem da consciência das possessões humanas pelos mitos, ideologias, idéias ou deuses, assim como da consciência das derivas que levam os indivíduos bem mais longe, a lugar diferente daquele onde querem ir. A tolerância vale, com certeza, para as idéias, não para os insultos, agressões ou atos homicidas.



5. COMPREENSÃO, ÉTICA E CULTURA PLANETÁRIAS
Devemos relacionar a ética da compreensão entre as pessoas com a ética da era planetária, que pede a mundialização da compreensão. A única verdadeira mundialização que estaria a serviço do gênero humano é a da compreensão, da solidariedade intelectual e moral da humanidade. As culturas devem aprender umas com as outras, e a orgulhosa cultura ocidental, que se colocou como cultura-mestra, devese tornar também uma cultura-aprendiz. Compreender é também aprender e reaprender incessantemente. Como podem as culturas comunicar? Magoroh Maruyama fornece-nos uma indicação útil. Em cada cultura, as mentalidades dominantes são etno ou sociocêntricas, isto é, mais ou menos fechadas em relação às outras culturas. Mas existem, dentro de cada cultura, mentalidades abertas, curiosas, não-ortodoxas, desviantes, e existem também mestiços, fruto de casamentos mistos, que constituem pontes naturais entre as culturas. Muitas vezes os desviantes são escritores ou poetas cuja mensagem pode se irradiar tanto no próprio país quanto no mundo exterior. Quando se trata de arte, de música, de literatura, de pensamento, a mundialização cultural não é homogeneizadora. Formam-se grandes ondas transnacionais que favorecem ao mesmo tempo a expressão das originalidades nacionais em seu seio. Foi assim na Europa no Classicismo, nas Luzes, no Romantismo, no Realismo, no Surrealismo. Hoje, os romances japoneses, latinoamericanos, africanos são publicados nas grandes línguas européias e os romances europeus são publicados na Ásia, no Oriente, na África e nas Américas. As traduções dos romances, ensaios, livros filosóficos de uma língua para outra permitem a cada país ter acesso às obras dos outros países e de nutrir-se das culturas do mundo, alimentando ao mesmo tempo, com suas obras, o caldo de cultura planetária. Com certeza, aquele que recolhe as contribuições originais de múltiplas culturas está ainda limitado às esferas restritas de cada nação; mas seu desenvolvimento é um traço marcante da segunda metade do século XX e deveria estender-se até o século XXI, o que seria triunfal para a compreensão entre os humanos. Paralelamente, as culturas orientais suscitam no Ocidente múltiplas curiosidades e interrogações. O Ocidente já havia traduzido o Avesta e os Upanishads no século XVIII, Confúcio e Lao-Tseu no século XIX, mas as mensagens da Ásia permaneciam restritas a objetos de estudos eruditos. Foi apenas no século XX que a arte africana, os filósofos e místicos do Islã, os textos sagrados da Índia, o pensamento do Tao, o do budismo transformaram-se fontes vivas para a alma ocidental isolada ao mundo do ativismo, do produtivismo, da eficácia, do divertimento, que aspira à paz interior e à relação harmoniosa com o corpo. A abertura da cultura ocidental pode parecer para alguns ao mesmo tempo não-compreensiva e incompreensível. Mas a racionalidade aberta e autocrítica decorrente da cultura européia permite a compreensão e a integração do que outras culturas desenvolveram e que ela atrofiou. O Ocidente deve também incorporar as virtudes das outras culturas, a fim de corrigir o ativismo, o pragmatismo, o “quantitativismo”, o consumismo desenfreados, desencadeados dentro e fora dele. Mas deve também salvaguardar, regenerar e propagar o melhor de sua cultura, que produziu a democracia, os direitos humanos, a proteção da esfera privada do cidadão. A compreensão entre sociedades supõe sociedades democráticas abertas, o que significa que o caminho da Compreensão entre culturas, povos e nações passa pela generalização das sociedades democráticas abertas. Mas não nos esqueçamos de que, mesmo nas sociedades democráticas abertas, permanece o problema epistemológico da compreensão: para que possa haver compreensão entre estruturas de pensamento, é preciso passar à metaestrutura do pensamento que compreenda as causas da incompreensão de umas em relação às outras e que possa superá-las. A compreensão é ao mesmo tempo meio e fim da comunicação humana. O planeta necessita, em todos os sentidos, de compreensões mútuas. Dada a importância da educação para a compreensão, em todos os níveis educativos e em todas as idades, o desenvolvimento da compreensão necessita da reforma planetária das mentalidades; esta deve ser a tarefa da educação do futuro.